Relato da dor: um amor de 52 anos ceifado pela tragédia em Bento Gonçalves

No momento da tragédia, Gallon estava em Porto Alegre, onde permanece de segunda a quinta. “No dia 29 de abril, como sempre fazia às segundas-feiras, me dirigi a Porto Alegre...

Alceu Ângelo Gallon nasceu em Santo Antônio da Patrulha, no dia 4 de junho de 1948, mas com apenas 40 dias de vida, veio com seus pais para Bento Gonçalves. Casou-se com Nelsa Faccin no dia 20 de maio de 1972. “Daí por diante, ela se chamou Nelsa Faccin Gallon, para minha honra. Vivemos juntos por 51 anos 11 meses e 10 dias, em várias cidades desse país, como Santarém, Itaituba, Miritituba e Porto Trombetas no estado do Pará por 12 anos e meio. Retornamos a Bento Gonçalves em 1984. Desta data em diante ela sempre morou aqui, e eu sempre trabalhei fora (Caçapava do Sul, Candiota e Porto Alegre), retornando nos fins de semana ou a cada 15 dias”, conta.

No momento da tragédia, Gallon estava em Porto Alegre, onde permanece de segunda a quinta. “No dia 29 de abril, como sempre fazia às segundas-feiras, me dirigi a Porto Alegre. Como começou a chover muito na terça, dia 30, decidi ir para casa, com medo que houvesse mais uma enchente. Porém, ao chegar em Bom Princípio, não consegui seguir viagem, pois havia água na pista e não deixavam mais ninguém passar. Permaneci no local até anoitecer. Quando decidi dormir num hotel, não havia mais vaga. Retornei até São Sebastião do Caí, e também não consegui vaga para pernoitar. Além disso, não tinha mais como sair de lá, pois o trecho para Porto Alegre estava interrompido. Passei a noite no carro. Pela manhã, nova tentativa de voltar a Bento sem sucesso, pois as estradas estavam todas bloqueadas, então tive que retornar a Porto Alegre”, relata.

No trajeto, ao chegar em Portão, por volta das 9h30min, Gallon recorda que ligou para Nelsa, ocasião em que ela disse que estava tudo bem, que a chuva estava diminuindo. “Senti na voz dela bastante tranquilidade, por isso não recomendei que saísse de casa. Foi a última vez que nos falamos. Ao chegar em Porto Alegre, liguei novamente, mas havia algo errado, pois o telefone já não chamava mais. Deste momento em diante começou o sofrimento de não ter mais nenhuma notícia”, lamenta.

Na manhã seguinte, 2 de maio, por volta das 8h30min, uma ligação da sobrinha Débora, moradora de Florianópolis, levou a Gallon a notícia de que um grupo de 16 pessoas, todas da família Faccin ou parentes, haviam fugido da Linha Imaculada e estavam recolhidas no Salão da Alcântara. “A informação era de que, inclusive, havia pessoas bem machucadas, pois ocorreram muitos deslizamentos de terra. Ela me disse, ainda, que no momento da fuga alguns foram atingidos, mas que do grupo de 16, três mulheres, que no caso seriam a Nelsa, a Isabel e a Carine, tinham ido para a casa de uma família acima do salão, onde a comunicação era difícil. Solicitei então que alguém fosse até elas para me dar notícias, mas passou o dia todo e não recebi nenhuma”, diz.

No início daquela noite, Gallon recebeu um áudio de um amigo contando que uma enfermeira do Samu, que socorreu o André (esposo da Carine) e, na viagem de Caravaggio (Monte Belo) até a UPA, em Bento, relatou o ocorrido. Ela dizia que o Nordélio, pai do André, estava andando na avalanche e, de repente, se voltou para trás e a irmã dele havia desaparecido. A única irmã dele, naquele momento, naquele local, era a Nelsa. “Foi aí que me caiu a ficha, como dizem. Daquele instante em diante, a procura por informações se intensificou da minha parte, pois eu me recusava a acreditar que tal fato pudesse ter ocorrido. Só tive absoluta certeza de tudo no dia 4 de maio, por volta das 11h, quando a Eliane, uma vizinha e amiga nossa que conseguiu se salvar, me ligou contando tudo”, relembra.

Somente no dia 6 de maio Gallon conseguiu retornar a Bento, saindo de Porto Alegre por volta das 13h30min e chegando às 19h. Para acessar a residência, na Linha Imaculada, foram mais nove dias de espera. “Encontrei um verdadeiro cenário de guerra que a natureza proporcionou no local”, lastima.
A tragédia o abalou completamente. “Não admiti o ocorrido. O desespero foi total. Esbravejei, desejei tudo do pior que pudesse ter na face da terra para todos os que estavam no nosso grupo da comunidade. Mas parei, coloquei as ideias no lugar, me coloquei no lugar deles com um pouco de bom senso, só imaginando os momentos difíceis que eles tiveram em se sentir impotentes diante de tamanha violência da natureza. Hoje, não tenho mágoas de ninguém, pois não faço a mínima ideia de qual seria minha reação se eu estivesse junto. Talvez até pior do que a deles, que cada qual tentava apenas se salvar”, resume.

Há mais de 40 dias passados do fato, Gallon não tem mais esperanças de que seja encontrado nada das três mulheres desaparecidas. “O que me resta é recordar dos momentos bons que vivi ao lado da minha esposa. Por 86 anos, oito meses e 17 dias, ela esteve neste plano sempre fazendo o bem, deixando de ter regalias para ajudar aos outros, principalmente das nossas famílias. Não media esforços para estar com familiares sempre que necessário, especialmente nas enfermidades, mesmo sabendo que às 5h, no dia seguinte, iniciaria sua jornada. A comunidade em que morávamos e que foi construída desde 1889 pelos seus bisavós, avós, pais e parentes da mesma raiz, além das vizinhanças, estava se tornando um pequeno paraíso, principalmente após termos sido beneficiados com o asfalto e, mesmo após a enchente de setembro do ano passado, não tínhamos perdido a esperança da reconstrução, pois já estava quase tudo no seu devido lugar ou até melhor do que antes. A igreja havia sido 100% recuperada e estávamos nos preparando para recuperar o Salão Comunitário. De uma hora para outra, tudo foi praticamente destruído. Mas temos fé que ainda tenhamos coragem para retomar os nossos planos e projetos. Meu vizinho, Gilson De Villa, que teve a casa quase 100% destruída me fez a seguinte pergunta: você vai recuperar a sua casa? Eu respondi: Se você for, eu também vou. Isso pela memória da professora Nelsa que deu aulas naquele local por mais de 16 anos”, afirma.

Para finalizar, Gallon faz um pedido: “Aproveitando a oportunidade, deixo um pedido ao poder público: nada mais justo do que uma homenagem à memória das três mulheres que ali foram surpreendidas, Nelsa, Isabel e Carine, para que se nomeie a estrada de “Estrada das três mulheres Professora Nelsa Faccin Gallon”, conclui.

 

Fonte: Jornal Semanário

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