Recusa familiar segue sendo o maior desafio para a doação de órgãos

A lista de pessoas esperando por um órgão ou tecido é de 3.071 no estado

A doação de órgãos salva vidas. Embora esta frase seja amplamente divulgada, ela carrega um peso profundo e uma importância imensa para aqueles que vivem na fila de espera, como aponta Ana Maria Turmina, enfermeira da Comissão Intra-Hospitalar para Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT) do Hospital Tacchini. “É dar a oportunidade de um recomeço para as pessoas que estão na fila de espera, aguardando uma doação para continuar a viver. Hoje, além da doação de órgãos, existe a doação de córneas, pele e ossos”, diz a profissional.

A enfermeira aponta um dos principais desafios no país para a doação de órgãos. “No Brasil quem decide pela doação é a família. Mas esse tema é pouco conversado em vida, o que faz com que os familiares acabem rejeitando esta possibilidade. Quando a pessoa deixa dito em vida que é doadora facilita para a tomada de decisão. Ainda há baixa conscientização da população brasileira, o que contribui muito para a baixa adesão em doar. Infelizmente a doação de órgãos é uma ação de muita resistência no país”, evidencia.

Mesmo com estes desafios, o Hospital Tacchini já teve casos expressivos de doações de órgãos e tecidos. O tecido mais doado são córneas, sendo visto um aumento no número de doações este ano comparado a anos anteriores. Em 2022, houve 48 doações de córneas, em 2023 o número foi de 62 e neste ano, até o momento, o hospital recebeu 64 doações. Já os órgãos mais doados foram rins, sendo seis doações em 2022, três em 2023 e quatro em 2024, até o momento.

O tipo de órgão mais doado em Bento Gonçalves são rins, já o tipo de tecido são córneas

Segundo Ana, o processo de doação é meticuloso. “A equipe de retirada de órgãos é encaminhada pela Central de Transplantes do Rio Grande do Sul. É composta por médicos e enfermeiros que vem para a retirada já portando consigo materiais e recipientes específicos para o armazenamento e transporte. Cada órgão possui um tempo de sobrevida entre a retirada e o transplante para que o procedimento seja efetivo. Por exemplo o pulmão, após retirado, têm sobrevida de quatro a seis horas, coração quatro horas, fígado e pâncreas 12 horas, rins 18 horas. Córneas, pele e ossos podem ser armazenados por dias. A equipe de doação do Hospital Tacchini realiza toda a parte burocrática e acompanha todo o processo do início ao fim. Além disso, em nosso hospital são retiradas córneas pela equipe capacitada do próprio hospital. Coração, pulmões, ossos, fígado, rins e válvulas cardíacas são retiradas pela equipe da Central de Transplantes”, revela.

Infelizmente, há dificuldades neste processo. “Como a equipe de captação vem de Porto Alegre, caso ocorra algum bloqueio de estradas não se torna viável se deslocar até aqui. Por transporte aéreo também temos dificuldades, pois o hospital não possui um heliporto e o aeroclube do nosso município não tem condições de pouso e decolagens à noite”, comenta a profissional.

Filas de espera

Atualmente, no Rio Grande do Sul há uma alta demanda para doações de órgãos e tecidos. Esta alta demanda provoca longas filas de espera para os transplantes. Segundo dados da Comissão Intra-Hospitalar para Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes (CIHDOTT), há uma fila de 1515 pessoas para transplante de rins, 211 para fígado, 18 para coração, 76 para pulmão e 1251 para córneas.
Ana ressalta a necessidade do estado receber mais doações. “A urgência se dá pela situação clínica do paciente receptor. Muitos morrem na espera do transplante”, ressalta.

O impacto na vida de Renato Possamai

Entre as famílias que vivenciaram os dois lados do processo de doação e transplante está a de Susana Rech Possamai, esposa de Renato José Possamai. Ele, que aos 63 anos vive com um rim transplantado há 12 anos, foi diagnosticado com diabetes aos 20, o que levou a um quadro grave de insuficiências renais. Após quase quatro anos de hemodiálise – um processo exaustivo que consome horas e interfere na vida cotidiana –, ele recebeu a ligação da Santa Casa de Porto Alegre com a possibilidade de um novo rim. “Era uma noite de domingo, 26 de fevereiro de 2012, quando o telefone tocou. A médica questionou sobre a saúde de Renato e a possibilidade de ir até Porto Alegre em três horas para realizar os exames, visando o possível transplante. A emoção e a apreensão tomaram conta, mas após uma conversa conosco, ele aceitou a chance de poder mudar sua vida. Às 3h da manhã, já estava no hospital, onde uma equipe de transplante o aguardava para realizar os exames de compatibilidade. Gratidão à doadora e à família da doadora”, destaca Susana, com emoção, ao lembrar do momento que trouxe uma nova perspectiva de vida para Possamai.

Renato Possamai recebeu um rim em 2012

Susana também viveu a perda de um ente querido que se tornou doador. Luciano Massoco, padrinho de sua filha, faleceu subitamente devido a um AVC hemorrágico e, por decisão da família, doou órgãos, tecidos e ossos. “Foi um gesto que continua recebendo agradecimentos da Central de Transplantes até hoje”, conta Suzana.

Massoco era vice-presidente da Associação dos Docentes da UCS (Aducs)

Desafios e esperança na espera

O caminho até o transplante é desafiador e repleto de incertezas. Para entrar na fila, Possamai passou por uma série de exames e entrevistas, além de uma espera constante, com coletas de sangue a cada dois meses para garantir a compatibilidade com potenciais doadores. “A hemodiálise é desgastante e interfere na liberdade de deslocamento. A máquina tira toda a tua liberdade de horários, viagens, já que você só pode viajar onde tem máquina para fazer a hemodiálise”, lembra Susana, explicando que a rotina se transformou, inclusive com o uso de máscara e restrições alimentares e de visitas nos seis meses após o transplante.

Possamai ainda precisa de acompanhamento regular e faz revisões na Santa Casa, onde ele e outros transplantados reúnem experiências e apoio. “Os colegas da hemodiálise e suas famílias com suas histórias e vivências nos ajudam a entender melhor todo esse processo, como também os transplantados e seus familiares que a cada dois meses nos encontram nas revisões. Somos gratos pelas suas experiências e depoimentos”, destaca.

Caso Luís Miguel

A decisão de Grasiele Boaro Navarini e de seu marido em doar os órgãos do filho Luis Miguel, de apenas oito anos, foi um ato de generosidade e força em meio a uma perda devastadora. O menino, que estava em tratamento para púrpura e passava as férias na casa dos avós, sofreu um AVC hemorrágico, que resultou em morte encefálica. Grasiele relata que, ao receber o diagnóstico final, sentiu-se como se o chão tivesse desabado. Mas, em meio à dor, ela teve uma ideia: não queria que a história do filho terminasse ali, por isso resolveu doar os seus órgãos.

Luís Miguel Navarini vai se tornar nome de rua em Bento Gonçalves

Ela compartilha como a personalidade de Luís Miguel, sempre disposta a ajudar, inspirou a decisão. “Ele sempre foi um menino generoso, que queria ajudar as pessoas, e senti que o legado dele não deveria terminar aqui,” afirma. Com o apoio do marido, ela decidiu pela doação dos órgãos do menino, um ato que agora lhe dá forças para seguir em frente, sabendo que ele continua a salvar vidas de outras crianças que receberão os órgãos.

Durante os momentos de incerteza, a equipe médica se empenhou em garantir que os órgãos de Luís Miguel estivessem em condições adequadas para a doação, já que o AVC hemorrágico tinha espalhado sangue pelo corpo. Felizmente, os órgãos estavam em boas condições, possibilitando a doação de vários deles.

Agora, Grasiele carrega consigo a esperança de, um dia, conhecer os pacientes que receberam os órgãos de Luís Miguel. Em especial, ela deseja encontrar aquele que recebeu o coração do filho, um momento que simbolizaria sentir o coração dele bater novamente. “O que me consola é saber que há pedacinhos dele por aí, em outras crianças, que ele pôde salvar vidas,” compartilha com emoção.

Grasiele conta que, aos poucos, tenta lidar com a ausência e a saudade que se tornaram constantes. Ela relembra as palavras que o filho dizia: “Mãe, não chora, não fica triste, porque se tu chorar, eu também vou”, diz. Essas lembranças lhe dão algum consolo e ajudam a preencher o vazio deixado pela perda. Ela acredita que, um dia, terá o privilégio de reencontrá-lo e, até lá, continua vivendo com a esperança e a gratidão por tudo que ele a ensinou. “Hoje completam-se nove meses desde a partida de Luís Miguel, e, em homenagem a ele, uma rua, na Vila Olímpia receberá seu nome”, conclui.

Quem pode doar

Para a doação é necessário ter idade de dois a 80 anos, não possuir doenças como: alguns tipos de câncer, ser dialítico crônico, portador de hepatites, HIV, leucemias, doença de Parkinson, Alzheimer, demência.

Doadores vivos – Podem doar um dos rins, parte do fígado, parte do pulmão ou parte da medula óssea. Parentes até o quarto grau e cônjuges podem doar em vida, sem necessidade de autorização judicial. Não parentes só podem doar com autorização judicial.

Doadores mortos – Pessoas que morrem por morte encefálica ou por parada cardiorrespiratória e cujos familiares autorizem a doação.

Fonte: Jornal Semanario

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