“Sou tradicionalista desde que nasci”, disse Honero Castilhos de Lucena na sua última entrevista ao Estafeta
Reportagem de 22 de setembro de 2021, na íntegra:
Honero Castilhos de Lucena é conhecido pelo seu envolvimento com o tradicionalismo gaúcho, mas chegou em Veranópolis em função do trabalho da esposa. Natural de São Francisco de Paula, ele era oficial de cartório em Flores da Cunha e a esposa trabalhava como professora. “Ela começou a se interessar no meu serviço, aquilo de audiências, formalizar escrituras, registros e decidiu fazer um concurso. Se inscreveu para uma prova em Passo Fundo, mas de âmbito estadual. Eram seis vagas para 400 participantes. Ela era professora de matemática e português e na prova também exigia uma redação, ela foi fazer e tirou terceiro lugar. Ofereceram para ela trabalhar em Pinheiro Machado, Marcelino Ramos e Veranópolis”, relata.
Eles não conheciam nenhuma das três cidades, mas optaram pela Terra da Longevidade, pois era a mais perto e por já estarem mais acostumados com a região. “Ela pediu para eu vir para Veranópolis ver como era. Não tinha asfalto, não tinha prédio, tinha mais casa. Ela aceitou e veio. Eu continuei lá e vinha nos finais de semana, até conseguir ser transferido para mais perto. Podia ter ido para mais longe, mas aceitei ficar com os que eram distritos, Vila Flores, Fagundes Varela, depois estive um tempo em Nova Prata, porque tinha duas filhas pequenas e eu não podia ficar longe. A remuneração era menor, mas não interessa isso, o que interessa é o bem-estar, poder estar com a família”, explica.
De acordo com o oficial aposentado, anterior a isso, esteve na polícia e até fez concurso para Polícia Rodoviária Federal. “Tirei o segundo lugar, mas veio junto com o resultado do cartório. Optei pelo cartório, mesmo o rendimento sendo menor, porque na Federal eu teria que ser removido para diversos lugares mais distantes”, comenta. Para Lucena, há questões que valem mais do que o dinheiro. “Em função do acolhimento que tivemos na cidade, desde o início sempre nos sentimos em casa. Isso aí tudo conta, não em questão monetária, mas na vida da pessoa. Quando a pessoa se sente bem é como estar tomando um remédio para a saúde”, acredita.
Tradição Gaúcha
Filho e neto de campeiro, tanto Lucena, quanto a esposa, possuem envolvimento com o tradicionalismo desde que nasceram. Grande participante e incentivador das tradições, esteve na organização da retomada do CTG Rincão da Roça Reúna, em Veranópolis. “O CTG foi fundado em 1957, ficou quatro anos em atividade, depois deu uma parada. Em 1977, um radialista, Luiz Siqueira, propôs que fosse feito um torneio de laço no município, o qual foi realizado onde é a Gráfica Reúna. No ano seguinte foi feito novamente e foi indo. Quando me convidaram para assumir, eu disse que faria, mas queria formar toda a diretoria e partir para a invernada artística. A estrutura completa de um CTG tem a parte artística, musical, campeira e a diretoria”, conta.
Ele lembra que começaram a organização do rodeio de 1980 sem nada em caixa. Para poder começar a pensar no evento, precisavam de animais para serem utilizados nas provas. “Temos que pegar uns animais xucros, para a gineteada. Então, fomos para Vacaria, no CTG Porteira do Rio Grande e conseguimos 20 cavalos emprestados, sem custo, apenas o frete. ‘E o gado?’ Fomos a André da Rocha e Lagoa Vermelha. Uns nos deram 100 bois outros 50, também apenas com o custo do frete”, detalha Lucena.
Para a premiação, que na época não era em dinheiro, também conseguiram patrocinadores. “Arrumamos troféu que dava para fazer três rodeios. Fomos na Aurora de Bento de nos deram mais de 100 garrafões de vinho, só que não era para revender, era para distribuir aos que faziam a alimentação no local, que não dava para chamar de parque, porque era tudo improvisado, banheiros, a água a gente teve que puxar com bomba de propriedade próxima e armazenar em uma pipa de vinhos da Noé e fazer os ramais para distribuir, como era com a luz também”, descreve o tradicionalista.
Em busca de garantir o sucesso do evento foi organizada a divulgação. “Fizemos a licitação da bebida e uma empresa ganhou e nos deu os panfletos para propaganda. Eu saí daqui a Passo Fundo, Carazinho, Santa Rosa, Santa Maria, litoral, região. Felizmente veio gente de toda parte. Abatemos uns 14 bois para churrasco e foi tudo”, salienta, acrescentando que as atividades eram para iniciar numa quarta, até o domingo, mas na segunda começou a chegar gente: “Foram 400 e poucas barracas e trailers, veio até delegação do Uruguai, e da Argentina”.
O empenho e a fé de que daria para fazer um evento naquele porte colaboraram com o sucesso da festa. “Num belo dia a minha esposa achou os livros com todas as dívidas, 200 e poucos milhões, na época, e eu assinando. Ela perguntou quem ia pagar tudo aquilo e eu respondi ‘não sei’. Mas felizmente fizemos a venda de churrasco, tendas de produtos e a cobrança de entrada que deu para emparelhar as dívidas com a arrecadação. Já me disseram que no outro ano eu ia de novo. Aí, em 1981, já foi mais planejado, já tinha mais gente gostando daquilo, tivemos que fazer o baile no pavilhão da Femaçã”, recorda. Segundo Lucena, foi entre os anos de 1984 e 1985 que o Rincão passou a contar com o espaço onde é o Parque de Rodeios. “O galpão do CTG foi feito em 65 dias. Teve um sábado que eu contei 60 e poucas pessoas trabalhando, voluntariamente”, ressalta.
Em mais de 40 anos de atividade junto ao CTG de Veranópolis, Lucena destaca alguns momentos que marcaram história, tanto para ele quanto para o crescimento do movimento tradicionalista no município. “Tive o privilégio de ganhar, através de alguns amigos meus de Porto Alegre, 15 minutos da Bandeirantes para fazer propaganda do nosso evento. Depois fomos para Caxias do Sul, que era o canal 8 que eles chamavam, e nós ganhamos uma hora de patrocínio, para divulgar gratuitamente”, frisa.
Outra situação que entrou para a história foi a realização de um congresso estadual dos Centros de Tradição Gaúcha, em 1988. Cada ano é escolhida uma cidade para sediar a conferência e, para isso, a entidade precisa ter uma estrutura para receber. “Juntamos uma equipe e fomos pleitear esse congresso. Nós com dois carros e os outros municípios com vários ônibus. Levamos coisas daqui, como vinho, queijos, salames e outros itens. Como dependia de uma votação, chegamos no acampamento dos outros municípios, conversamos e convidamos para provarem os produtos nas nossas instalações. O pessoal apareceu e gostou. À noite fomos para a votação. No pronunciamento, falamos do que teria, os tipos de comida que iam ser servidos, como sopa de capeletti, lasanha, sagu de vinho. Acabamos fazendo 240 votos, Santa Rosa, 177, e Piratini pouco mais de 80”, relembra.
Ele afirma que tudo que foi prometido foi feito e foi um sucesso. “Depois de uns 10 anos, mais ou menos, eu estava em Santana do Livramento e umas pessoas começaram a me olhar e um me disse ‘você não é da zona da Serra?’, ‘Sim eu sou’, ‘de qual cidade?’ ‘Veranópolis’, respondi. ‘Ah, lembro do Congresso, quando vocês vão fazer de novo?’, me perguntou. Então aquilo marcou muito”, rememora Lucena, que hoje ocupa o cargo de Patrão de Honra, o posto mais alto da entidade em Veranópolis. “Fico muito satisfeito, muito agradecido a essa homenagem que não é a mim, é para minha família, porque não se faz nada sem o apoio da família, da diretoria”, emociona-se.